Para advogada, cenário é assustador e requer envolvimento de toda a sociedade
Os números acima são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, referentes ao ano de 2017, e considera apenas os casos de violência física e que foram denunciados às autoridades.
Ou seja, casos de agressões psicológicas, sexual, patrimonial e moral não foram incluídos. E mais: estima-se que o número de casos denunciados corresponda a apenas 10% do número real de mulheres violentadas. É assustador.
Se pararmos para pensar, as chances de ter alguém na sua família ou no seu círculo de amizade, sofrendo por causa disso é muito grande. A violência está mais perto do que imaginamos (confira aqui o depoimento de uma mãe, vítima de violência doméstica).
Nessa entrevista, a advogada Ana Maria Franco Canale, membro da Comissão de Direitos Humanos da 17ª Subseção da OAB/SP, explica em detalhes quais são os direitos da mulher, que tipo de violências estão sujeitas, a quem devem recorrer e quais as orientações a seguir.
Além disso, desmistifica o ditado popular de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.
Segundo ela, denunciar abusos é dever de todos. “Diante dessa realidade, é dever de todo cidadão tomar atitudes mais ativas quando diante do mínimo indício de comportamento violento, estendendo sua mão a quem está sendo agredido e fazendo a sua parte no combate a essa violência”, ressalta.
Ao final da entrevista, incluímos links para o Anuário e outros materiais sobre o assunto.
Confira a entrevista completa.
Direto do Nosso Jardim: O que é a violência doméstica contra a mulher?
Ana Maria: Segundo a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, refere-se à violência doméstica contra a familiar. Apesar do nome “doméstica”, engloba qualquer relação íntima de afeto, independentemente de coabitação.
Portanto, a violência doméstica é qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.
DNJ: A violência contra a mulher pode ocorrer de que formas?
AM: É importante frisar que a violência doméstica não é apenas a física, mas pode ser também psicológica, sexual, patrimonial e moral.
Por exemplo, o controle de suas ações (inclusive o direito de ir e vir), o controle de seus comportamentos, crenças e decisões, o constrangimento,a humilhação, a manipulação, a vigilância constante, a perseguição, a chantagem, a ridicularização, são formas de violência psicológica.
Ser constrangida a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, ser impedida de usar métodos contraceptivos, ser forçada ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, são formas de violência sexual.
A retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, são formas de violência patrimonial.
A calúnia, difamação ou injúria são formas de violência moral.
DNJ: Qual a recomendação para a mulher que sofre violência doméstica?
AM: Diante das inúmeras formas de violência, e das inúmeras formas de repressão a que a mulher pode estar submetida, não dá pra apresentar uma recomendação que atenda e seja viável a todas as mulheres nessa situação.
A situação de violência, quando identificada, deve ser levada a conhecimento das autoridades.
Se houver na cidade, a mulher deve se dirigir a uma delegacia especializada (Delegacia da mulher); se não houver, deve ir até a delegacia comum, levando o maior número de provas e testemunhas que for possível (no momento do boletim de ocorrência, deve-se apresentar os nomes e endereços das testemunhas, para que sejam ouvidas posteriormente).
“O cidadão precisa estar atento e se desvincular dos antigos ditados populares de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, e dos arcaicos comportamentos,que estão permitindo mortes e agressões”.
Ana Maria Franco Canale, advogada
Porém, como a violência geralmente começa de forma gradativa, é necessário estar atenta, e identificar se é possível ter um suporte de familiares ou amigos.
É imprescindível não silenciar e não achar que situações de violência são normais. É preciso falar a respeito disso. Às vezes, a ajuda pode vir de uma colega de trabalho.
Vale lembrar o contido no §2º da Lei Maria da Penha de que cabe à família, à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos ali previstos.
Sendo assim, a sociedade, o cidadão precisa estar atento e se desvincular dos antigos ditados populares de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, e dos arcaicos comportamentos, que estão permitindo mortes e agressões. Para a Lei ser efetivada é preciso que o cidadão aja, não silencie.
DNJ: Que provas a mulher deve levar para denunciar a violência doméstica sofrida?
AM: As testemunhas em caso de violência da mulher podem não ter presenciado o ato em si, as vias de fato, a violência física, mas podem trazer pequenos elementos, que juntos fortalecerão a denúncia da mulher.
Como a violência acontece de forma clandestina, muitas vezes, dentro de quatro paredes, os indícios de que ela ocorreu poderão vir de testemunhas, que não necessariamente presenciaram acena.
Por isso, não tenha medo de denunciar, ou de intimidações do tipo “ninguém vai acreditar em você”, só porque foram atos de violência sem “telespectadores”. A violência doméstica tem essa característica e os profissionais que irão lidar com isso, tem essa consciência.
DNJ: Quais os direitos da mulher nessa questão?
AM: De imediato, em caso de risco devida, é direito da mulher o fornecimento de transporte para ela e seus dependentes para abrigo ou local seguro.
Se necessário for, policiais deverão acompanhar a mulher até o local da ocorrência ou do domicílio familiar para assegurar a retirada de seus pertences.
Ao prestar depoimento, a mulher tem direito a não revitimização, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo fato, bem como questionamentos sobre a vida privada.
Porém, todo fato – ao ser levado para o ato do boletim de ocorrência – deverá ser esmiuçado, até para que se tenha um julgamento justo ao final.
Após a lavratura do termo, a mulher tem direito a medidas protetivas de urgência, a serem determinadas pelo Juiz.
DNJ: Quais são as medidas protetivas que a mulher tem direito?
AM: Essas medidas vão depender do caso concreto e da necessidade da vítima.
A medida protetiva pode obrigar o agressor a se afastar do lar e proibir de se aproximar da ofendida, de seus familiares e testemunhas; proibir o contato por qualquer meio de comunicação; restringir ou suspender visitas aos filhos do casal; e fixar prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
Para a proteção patrimonial dos bens comuns ou particulares da mulher, o juiz pode determinar a proibição temporária para a negociação dos bens comuns, suspender procurações que tenha sido passadas ao agressor, entre outras.
DNJ: O que fazer quando o agressor desrespeita as medidas protetivas?
AM: Descumprir medida protetiva é crime. É aconselhável que a mulher ande com uma cópia da medida, forneça a amigos e familiares, deixe na escola dos filhos, e em caso de descumprimento, ligue 190, informando tal fato.
Lembrando que o atendimento via 190, em caso de descumprimento de medida protetiva, é prioritário.
DNJ: Que outras ferramentas o Estado oferece nessa área?
AM: Por determinação judicial e por um prazo certo, poderá haver a inclusão da mulher no cadastro de programas assistenciais do governo federal, estadual e municipal.
Para preservar sua integridade física e psicológica, o Juiz assegurará a mulher que for servidora pública, o acesso prioritário a remoção para outro local de trabalho; e para a funcionária celetista, determinará a manutenção do vínculo trabalhista, quando necessário o afastamento do local de trabalho, por até seis meses.
Nos casos de violência sexual, a assistência compreenderá o acesso aos serviços de contracepção de emergência, a profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e outros procedimentos médicos necessários e cabíveis.
DNJ: Como denunciar o marido sem abalar psicologicamente os filhos (especialmente as crianças)?
AM: A mulher que esteja vivendo em situação de violência doméstica deverá ter em mente que o abalo psicológico provavelmente será maior na manutenção dessa situação. É importante não se culpabilizar, porque é vítima, e não se calar.
DNJ: O que se deve fazer ao presenciar uma briga em que uma mulher é agredida ou ameaçada?
AM: Ao presenciar uma briga desse tipo, a primeira medida e emergencial é ligar 190, para que haja o flagrante do ato, e a possibilidade de neutralização do agressor.
Quando identificar uma situação com indícios de possíveis agressões, de constantes brigas de teor alarmante,onde haja a suspeita da ocorrência da violência doméstica, deve-se ligar 180. Por meio desse canal, pode-se fazer denúncias confidenciais, que serão investigadas, porém sem o envio imediato de socorro.
DNJ: O que fazer quando a mulher não quer denunciar o agressor?
AM: A ação penal pela agressão física não depende da representação da mulher que foi agredida. Ao presenciar uma agressão física, deve-se levar ao conhecimento da autoridade policial.
Porém, outras formas de violência poderão ocorrer sem que a mulher sequer se dê conta de que está sendo agredida, reprimida, ou forçada a fazer algo.
Nesses casos,poderá haver a denúncia através do 180, para que haja uma intervenção, por meio de uma investigação, e a mulher tenha acesso a mais informações sobre os seus direitos.
DNJ: Qual sua avaliação sobre o cenário da violência doméstica contra a mulher no Brasil?
AM: As estatísticas a respeito do tema assustam. Em se tratando da violência doméstica física (lesão corporal dolosa), temos o alarmante dado de 193.482 vítimas mulheres no Brasil em 2017, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
São 22 mulheres por hora, e 528 por dia.
Esses são apenas os casos de violência física contra a mulher, desconsiderando a violência psicológica e demais formas.
Isso, pensando ainda, nos casos que são levados a conhecimento das autoridades, que se estima seja 10% apenas dos casos.
Diante dessa realidade, é dever de todo cidadão tomar atitudes mais ativas quando diante do mínimo indício de comportamento violento, estendendo sua mão a quem está sendo agredido e fazendo a sua parte no combate a essa violência.
Crédito da foto em destaque: Pixabay
Mais informações:
Lei Maria da Penha – Lei 11340/06 – http://www.planalto.gov.br/CCivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm
Lei Maria da Penha, o que é – https://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_Maria_da_Penha
Anuário Brasileiro de Segurança Pública- http://www.forumseguranca.org.br/atividades/anuario/
Brasileiros ainda acham que as mulheres vítimas de violência provocam agressão – https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/brasileiros-ainda-acham-que-as-mulheres-vitimas-de-violencia-provocam-agressao/
Relatório “Violência Contra a Mulher no Brasil – Acesso à Informação e Políticas Públicas” – http://artigo19.org/wp-content/blogs.dir/24/files/2015/03/Relat%C3%B3rio-Viol%C3%AAncia-contra-a-Mulher.pdf
ONU Mulheres – http://www.onumulheres.org.br/
Diretrizes Nacionais Feminicídio – Investigar, processar e julgar comperspectiva de gênero as mortes violetas de mulheres – http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2016/04/diretrizes_feminicidio_FINAL.pdf