Psicóloga analisa o cenário da violência doméstica contra a mulher e garante: antes de tudo, é preciso tomar consciência
Pode parecer óbvio, mas “tomar consciência” de que a violência existe é o primeiro passo para se libertar e se empoderar. Nessa entrevista, a psicóloga Natália Castanha, madrinha deste blog, reflete sobre questões que estão enraizadas em nossa sociedade e revela uma situação muito comum entre as mulheres que são violentadas: Na maioria das vezes, mesmo sendo agredidas verbalmente, psicologicamente e até fisicamente, as mulheres demoram para tomar consciência de que estão sofrendo algum tipo de violência e poucas buscam ajuda.
(Veja aqui o depoimento de uma mãe que foi vítima de violência doméstica e como deu a volta por cima).
Para a psicóloga, a responsabilidade pela violência não é da mulher sofreu ou sofre. Porém, é preciso refletir sobre a necessidade de se tomar consciência e buscar ajuda. “A violência contra a mulher é um crime inadmissível”, ressaltou.
E não é só. Essa violência, em geral, faz parte de um padrão dessa sociedade machista, que é repetido de forma cíclica, de geração em geração. Seja do ponto de vista do violentador ou da vítima. Por isso, a importância de buscar ajuda e reverter esse ciclo, especialmente no caso das crianças.
Confira a entrevista completa.
Direto do Nosso Jardim: O que é a violência?
Natalia Castanha: A violência é o ato de violar o direito do outro. Violar o espaço do outro. E sim, violar a psique do outro.
DNJ: Em termos psicológicos, como a mulher absorve a violência praticada contra ela?
NC: Existem várias nuances. Quando uma mulher sofre violência doméstica, além das questões de autoestima, ela pode acreditar que mereça estar nesse lugar.
Isso mesmo. É muito comum ela acreditar que, realmente, não é boa o suficiente. Que, realmente, talvez mereça esse castigo.
Violência é algo muito profundo. Contra a mulher, envolve aspectos que foram, durante muitos anos, considerados como “normais” pela nossa sociedade.
Precisamos relembrar o lugar da mulher na sociedade desde sempre. E se formos pensar, a nossa cultura já evoluiu bastante, mas as mudanças que ocorreram ainda são muito recentes.
Até o século passado, mulheres não votavam e não tinham voz para decidir politicamente seus representantes. Em alguns países, ainda hoje, a mulher não pode tirar a sua Carteira Nacional de Habilitação. E, mesmo nas sociedades mais avançadas, a mulher ainda ganha menos que o homem no mercado de trabalho.
Portanto, esse lugar que a mulher ocupa na sociedade, junto com esse peso social, cultural e histórico, acaba refletindo na psique, tanto das mulheres quanto dos homens.
Todos os fatos da humanidade estão dentro do inconsciente coletivo; estão, por exemplo, dentro da psique daquela mulher que vive com um homem que a violenta.
Por isso, diante de todo esse histórico, pode ser que essa mulher, realmente, acredite que esse é o lugar dela. Que merece. Que deve apanhar ou que deve estar nessa posição de inferioridade.
A violência contra a mulher ainda é algo que a sociedade aceita, de uma forma ou de outra. Por isso, o que acontece nos lares é aquilo que a sociedade legitima.
No consultório, trabalhamos muito a questão do empoderamento feminino, ou seja, esse apropriamento do valor próprio.
“Existe uma cultura de violência muito enraizada em nossa sociedade. A mulher ainda é vista como objeto. No passado, trocavam as por dotes e ainda hoje temos resquícios disso.”
Natália Castanha, psicóloga
Em geral, as mulheres que vivem nesses lares violentos e que “aceitam” isso (ou que simplesmente não conseguem encontrar outra opção) tiveram pais violentos, que batiam em suas mães.
O resultado é, inconscientemente, repetir o padrão. Por isso, acabam encontrando um marido que também gera essa violência no lar. E, dentro desse ciclo, essas mulheres não conseguem entender que existem outras formas de se relacionar com o outro, não apenas de forma violenta.
Também há casos em que o marido acaba se mostrando violento depois de algum tempo de convivência.
Muitas vezes, é uma forma de legitimar que é o “todo poderoso” e que pode tudo; que a mulher é seu objeto; que a casa é sua.
Nesse momento, ele violenta a mulher psicologicamente e fisicamente. Aos poucos, é a mulher que acaba se perdendo. Perdendo seus valores e a própria consciência de si própria.
DNJ: Qual o dano psicológico para os filhos?
NC: Os filhos, que não passam por um tratamento, ficam com essas marcas e podem no futuro repetir o padrão.
Podem se tornar adultos extremamente problemáticos, com dificuldades na construção da sua própria personalidade. Podem ter dificuldades escolares e fracassos profissionais,por conta desse ambiente que não é propício para o desenvolvimento saudável.
Em geral, quando algo vai errado na família, a criança ou se torna violenta ou passiva demais. No caso de um pai violento, é ainda pior. A paternagem é deficiente. A criança, em geral, cresce com um pai que a rejeita ou que não tem noções de amor, ao menos sem violência.
DNJ: O que pode levar um marido a praticar esses atos?
NC: Cada caso é um caso. No consultório, infelizmente, os homens ainda são minoria, por conta da cultura do machismo.
Muitos homens, que buscam a terapia, chegam ao consultório com muitas crenças disfuncionais sobre o que é ser homem e ser pai.
A maioria traz na bagagem todo o machismo da nossa sociedade e a obrigação de ser, durante todo o tempo, frio, racional, forte, violento.
DNJ: Para a mulher, como dar o primeiro passo e sair de uma situação de violência?
NC: O primeiro passo é a mulher tomar conhecimento de que ela está sofrendo violência.
É importante lembrar que isso não acontece só em casamentos, mas também é comum em outros tipos de relacionamento, como o namoro.
O abuso, o excesso de ciúme, o ato de controlar as amizades, as roupas que ela veste, de exigir o sexo… tudo isso também é violência. E violência não é normal.
DNJ: Numa pesquisa, realizada em 2013, quase metade dos homens entrevistados concordou com a frase: mulher que apanha é porque provoca. Algumas entrevistadas também demonstraram concordar com a afirmação. Qual sua opinião sobre isso?
NC: Existe uma cultura de violência muito enraizada em nossa sociedade. A mulher ainda é vista como objeto. No passado, trocavam as por dotes e ainda hoje temos resquícios disso.
Quando se diz: “não seja machista”. Não é mimimi. Existem pessoas morrendo por conta disso.
A violência não tem justificativa e ainda assim temos mania de querer justificá-la. Não interessa o que outro fez: “Não vou matar uma pessoa no trânsito, só porque‘me fechou’. Não vou estuprar, só porque ela está com roupa curta ou porque está bêbada”. Nada justifica uma violência.
DNJ: No consultório, você recebe muitas mulheres vítimas de violência?
Infelizmente, recebo poucas. E não é porque poucas sofrem violência. Pelo contrário, sabemos que muitas sofrem. O problema é que poucas acabam tomando consciência ou têm um pouco de condição psicológica para buscar ajuda.
DNJ: Mesmo tendo deixado a situação de violência, a mulher precisa de tratamento?
NC: Com certeza. Quando estão sofrendo a violência, precisam de tratamento. Tanto a mulher como o homem. Quando deixam essa situação, mais ainda. Eles precisam se conhecer, conhecer o seu lugar e não carregar esses padrões para a vida.
DNJ: E quanto às crianças?
NC: As crianças, principalmente, precisam de tratamento. É importante ajudá-las a resolver as suas questões internas, para que não repitam padrões de violência em suas vidas.
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Crédito da foto em destaque: pixabay.com