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Autismo: como identificar, tratar e conviver

“Há dias em que a única coisa previsível é a imprevisibilidade; e que o único atributo constante é a inconstância. O autismo é intrigante, mesmo para aqueles que convivem com ele durante toda a vida.”
(Ellen Notbohm, no livro “Dez Coisas que toda criança com autismo gostaria que você soubesse”)

A história do Davi, contada aqui no blog pela sua mãe, Dayana Vasconcelos, trouxe vários questionamentos sobre o que, realmente, é o autismo; como é diagnosticado; quais os sintomas; como é tratado; onde existe tratamento; será que é a mesma coisa que hiperatividade; quais os direitos; e por que é tão difícil encontrar uma escola preparada para receber nossas crianças autistas.

Muitas pessoas se manifestaram pelas redes sociais após a publicação do depoimento da Dayana. Além da solidariedade, houve quem se identificou com a situação e compartilhou também um pouco da sua experiência. Num desses comentários, uma mãe fala sobre não criarmos estereótipos em torno do autista, mas reconhecermos nele a diferença, característica que nos faz humanos. Nem menos, nem mais. Apenas diferentes e humanos.

O autista é, para nós, mais uma flor do nosso jardim, que precisa de amor, cuidados e respeito.

Com o objetivo de esclarecer todas as questões levantadas, ouvimos três psicólogos envolvidos diretamente com o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), seja no seu diagnóstico, no seu tratamento e também no desenvolvimento das crianças autistas. Reproduzimos aqui essas informações, dicas e orientações. Ao final, também colocamos alguns links sobre o tema. Vamos lá?

Definições

“Autismo é um transtorno de base comportamental marcado por dificuldades persistentes na interação social e na comunicação, além de padrões restritos e repetitivos de comportamentos”, esclarece o psicólogo Rafael Dias Amato, especialista em Análise do Comportamento Aplicada pelo Paradigma, que atua na avaliação diagnóstica e no tratamento do transtorno na APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) de Mogi das Cruzes.

Diagnóstico

Rafael Amato: O diagnóstico precoce é altamente recomendado, porque as chances de melhora no quadro aumentam muito, principalmente, no caso de crianças com meses de idade. Crédito: Arquivo Pessoal.

De acordo com o psicólogo Ricardo Freitas, especialista em Análise de Comportamento pela Universidade de São Paulo (USP) e que atua com autismo e quadros psiquiátricos em clínicas, o diagnóstico se dá a partir do relato familiar e da observação direta dos sintomas, com base no Manual de Diagnósticos e Estatísticas da Sociedade Norte Americana de Psiquiatria e na Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde.

Ele aponta que, apesar de, na maioria das vezes, uma equipe multidisciplinar participar da avaliação diagnóstica, o laudo conclusivo é do profissional médico e o ideal é que o tratamento comece antes mesmo da criança completar um ano.

Seu colega Rafael Amato ressalta que o diagnóstico precoce é altamente recomendado, porque as chances de melhora no quadro aumentam muito, principalmente, no caso de crianças com meses de idade: “Em casos mais leves, no entanto, os comportamentos são observados muito tardiamente, na maioria das vezes, em idade escolar (de 6 a 8 anos), que é quando os comportamentos de interação social deveriam estar mais presentes”.

Sintomas

Rafael esclarece que o Transtorno do Espectro do Autismo é heterogêneo, ou seja, as características podem variar muito de uma pessoa para outra. Além disso, dependendo do grau de dificuldade do indivíduo, os sintomas podem não se manifestar totalmente até que a pessoa tenha uma necessidade social maior.

Em geral, devem estar presentes sintomas como: limitação na reciprocidade social e emocional; limitações nos comportamentos verbal e não verbal; limitações em todos os âmbitos de um relacionamento e dificuldade em se ajustar às situações sociais; movimentos repetitivos e estereotipados; manias rotineiras ou padrões ritualísticos de comportamentos verbais ou não verbais; interesses restritos anormais na intensidade e foco; e dificuldades quanto a estímulos sensoriais do ambiente.

Quando se manifesta

Ricardo Freitas: “Já acompanhei e ajudei a avaliar o repertório de crianças de três anos e adultos com 25. Um indivíduo com autismo não deixa de ter autismo, por isso, a identificação deve ocorrer o quanto antes”. Crédito: Arquivo pessoal.

“Pode se manifestar a partir de muito cedo, com meses de idade, quando a pessoa apresenta características bastante marcantes. Porém, não existe uma idade final para o diagnóstico. Existem relatos de adultos que, após participarem de palestras ou assistirem a programas de TV sobre o assunto, se identificaram e foram buscar eles próprios a avaliação de profissionais, quando receberam o diagnóstico positivo”, conta Rafael.

O psicólogo Ricardo concorda: “Já acompanhei e ajudei a avaliar o repertório de crianças de três anos e adultos com 25. Um indivíduo com autismo não deixa de ter autismo, por isso, a identificação deve ocorrer o quanto antes”.

Tratamento

O tratamento do autismo deve contar com uma equipe multidisciplinar, formada por neurologista ou psiquiatra, psicólogo, fonoaudiólogo e terapeuta comportamental. As orientações precisam ser seguidas à risca para darem resultado. Apesar disso, aqui também vale a máxima: cada caso é um caso. Em algumas situações, também entram educadores físicos. Em considerável parte dos casos, o médico pode orientar o uso de medicamentos.

Na rede pública, nem sempre as famílias têm acesso a profissionais capacitados e a uma equipe tão completa assim. Por isso, a orientação é buscar as vias jurídicas.

Apesar do preconceito de muita gente, os autistas estão ocupando posições importantes na sociedade. Segundo o psicólogo Ricardo, existem possibilidades de evolução\adaptação tanto do autismo mais severo quanto do mais leve. “Sempre existe a probabilidade de apresentar algum avanço adaptativo. Uma criança pode aprender a se comunicar por figuras, diminuir autolesivos, e, inclusive frequentar uma faculdade”.

O método ABA

Do inglês “Applied Behavior Analysis”, a Análise do Comportamento Aplicada é utilizada, no Brasil, principalmente por psicólogos especialistas em análise do comportamento.

Ricardo Freitas, que trabalha diretamente com o ABA, explica de forma resumida que trata-se de um conjunto de técnicas que visam criar um método específico para cada caso, dentro de um protocolo. Esse método é aplicado em casa, nas instituições, escolas e, inclusive com o envolvimento de familiares. “Cabe ressaltar que, quanto mais intenso for a aplicação, maior evolução a criança apresenta, pois, há uma relação direta com a estruturação de estímulos que auxiliam no desenvolvimento”.

E continua: “Ir ao banheiro, eliminar ou diminuir uma restrição alimentar, dar a função adequada a um brinquedo, responder ou entender adequadamente uma pergunta, interpretar e expressar emoções e muitos outros programas fazem parte deste processo”.

Para Rafael Amato, a ABA é o único meio baseado em evidências científicas para atuar no tratamento do autismo. “Constantemente são ‘inventados’ novos métodos de tratamento, o que pode prejudicar ainda mais a vida destas pessoas. Portanto, minha recomendação é ‘para diagnosticar e tratar o autismo, busque profissionais envolvidos com o espectro do autismo, capacitados e envolvidos com pesquisas científicas ou especializadas em ABA’”, orienta.

Autismo X Hiperatividade

“Primeiramente, uma criança autista pode apresentar hiperatividade, porém um hiperativo não é um autista”, esclarece Ricardo Freitas.

Ele completa: “No autismo, podemos identificar excesso ou necessidade de rotina, déficits nas áreas de comunicação verbal e não verbal, déficits nas áreas sociais, envolvendo interação e reciprocidade, padrões repetitivos e restritivos em atividades e interesses, comportamentos motores estereotipados e muitas vezes questões relacionadas à área sensorial”.

“Na hiperatividade, encontramos agitação física excessiva, impulsividade, agressividade, irritabilidade, dificuldade na concentração e falta de atenção, sem relação com indisciplina, podendo prejudicar o processo de aprendizagem e dificuldade em analisar ou pensar ações antes das execuções”, aponta.

Ele lembra que, em todos os casos a criança precisa ser avaliada clinicamente por especialistas para determinar qual tratamento e diagnóstico cabe a cada grupo de sintomas: “O tratamento pode ser executado por um grupo de profissionais ou por áreas específicas, como no caso do autismo, em que o mais recomendado é a Análise do Comportamento Aplicada (ABA), executada ou estruturada por um psicólogo especialista em comportamento. Já o diagnóstico cabe apenas ao médico”.

De acordo com o colega Rafael Amato, apesar de serem diagnósticos distintos, pesquisas indicam que de 30 a 50% dos casos de autismo têm relação com a hiperatividade, ou seja, o indivíduo pode ser autista e ter hiperatividade ou desatenção.

Escolas

O artigo 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) diz que é obrigação do Estado garantir atendimento educacional especializado às pessoas com deficiência, preferencialmente, na rede regular de ensino. O ECA considera que isso é fundamental para garantir o pleno desenvolvimento das crianças e adolescentes como pessoas, além de preparar para o exercício da cidadania e oferecer qualificação para o trabalho. Porém, na vida real, nem sempre funciona assim. A história do Davi é um exemplo.

Para o psicólogo Rafael Amato, esse é um tópico polêmico principalmente pelo despreparo das escolas brasileiras. “Nas escolas que visito, observo este despreparo, mas observo também a falta de estrutura, de auxílio e desinteresse, tanto governamental quanto de coordenadores e empresários das redes privada e pública”, revela.

Segundo ele, em outros países como Estados Unidos e Canadá, existe espaço para pessoas com necessidades especiais tanto no ensino regular como em colégios especiais, o que, a depender do grau de dificuldade, pode ser a melhor opção para o indivíduo autista. “Existe ainda o chamado homeschooling, que seria o ensino doméstico, em casa. Nesses países, esse modelo tem boa aceitação pelo sistema de ensino que eles praticam. No Brasil, nossas leis não permitem este modelo”, acrescenta.

A importância da família

Já sabemos que amor demais nunca faz mal, muito pelo contrário. No caso do autismo, além do afeto e da proteção, a família deve seguir todas as recomendações dos especialistas que acompanham o caso. “O papel da família é fundamental. Percebe-se, na própria prática, que há o avanço dos quadros quando existe engajamento por parte da família. Porém, o que ela deve fazer já pertence a um campo mais complexo e que exige atenção e orientação específica e profissional para cada caso”, explica o psicólogo Ricardo Freitas.

E ele dá uma dica: Se a família desconfia do autismo em suas crianças, registre os principais comportamentos que lhe chamam a atenção e leve isso a um profissional, psiquiatra infantil ou neuropediatra.

As brincadeiras e o desenvolvimento

Luciane: “O trabalho em conjunto (escola+família+equipe multidisciplinar) é o mais importante para o melhor desenvolvimento da criança”. Crédito: Arquivo pessoal.

A psicóloga escolar Luciane Torigoe de Carvalho –que trabalha com crianças e adultos, com Deficiência Intelectual e com autistas que, por ventura, também tenham Deficiência Intelectual –, ressalta que quanto mais amplo o trabalho, mais efetivo é o desenvolvimento de cada aluno.

A ludicidade é um dos aspectos mais significativos nas fases iniciais da vida e isso vale não só para a criança autista. “A ludicidade é um dos veículos mais privilegiados para um melhor processo de ensino-aprendizagem, além de reforçar laços afetivos e ajudar para uma melhor socialização, fatores que são importantes para as crianças com autismo. As brincadeiras e jogos devem então ser utilizados sem moderação. É por meio deles que o aprendizado acontece de forma tranquila e mais efetiva”, ressalta Luciane, que acompanha crianças a partir de 6 anos até adultos de 30 anos, na APAE de Mogi das Cruzes.

Ela lembra ainda que o trabalho do psicólogo não é somente a melhora do comportamento, mas também a orientação e trabalho conjunto com todos os envolvidos: “O trabalho em conjunto (escola+família+equipe multidisciplinar) é o mais importante para o melhor desenvolvimento da criança. Afinal, uma andorinha só não faz verão”.


Links úteis:

Direitos das Pessoas com Autismo. Cartilha disponível no portal da Defensoria Pública do Estado de São Paulo

“Dez Coisas que Toda Criança com Autismo Gostaria que Você Soubesse”, de Ellen Notbohm. E-book disponível no site “Ispirados pelo autismo”.

Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Lei nº 12.764, de 27 de dezembro de 2012


Crédito da imagem em destaque: Pixabay

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