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As birras e o desafio de superar a dolorosa fase dos “dois anos”

Psicóloga dá dicas de como lidar com o “terrible two” em casa e em público e faz um alerta: coerência e bom comportamento dos pais fazem todo o sentido nessa fase

 

Se você tem um bebê de dois anos em casa, sabe bem do que estamos falando. Mesmo um bebê supertranquilo, que passou o primeiro ano de vida dando shows de bom comportamento, pode mudar completamente de humor quando o aniversário de dois anos se aproxima. No início, eu achava que isso era balela e que os episódios de birra seriam controlados de forma muito simples. Minha filha sempre foi muito sossegada, mas desde os 18 meses dela, os desafios por aqui aumentam a cada dia.

Os dois anos são surpreendentes e divertidos, é verdade, principalmente porque nosso bebê parece estar cheio de autonomia e, no caso da nossa filha, que adora tagarelar, é cada “pérola” que ficamos pasmos e imaginando de onde veio aquela expressão ou aquele comportamento.

Porém, assim como na adolescência, os bebês de dois anos passam por uma explosão de sentimentos, que ainda não sabem como lidar. É por isso que as birras costumam ser bem frequentes e, nós pais, precisamos saber o que fazer. Não adianta se desesperar, ficar irritado, bravo, com vergonha. Às vezes, basta esperar a birra passar ou, então, tentar conversar e demonstrar interesse pelos sentimentos do seu bebê. É sério. Ele compreende quando você está disposto a ajudar, muito mais até do que você pensa.

Nessa entrevista, a psicóloga Márcia Romeiro* dá dicas valiosas para lidarmos com a fase dos dois anos de forma simples e leve. É claro que cada família é de um jeito, mas entender esse momento dos nossos pequenos é fundamental. Vamos lá!

 

DNJ: O que é a fase “terrible two”?

Márcia Romeiro: É a chamada “adolescência do bebê”, quando – aos dois anos – a criança inicia um novo processo de desenvolvimento (Para saber mais, clique aqui). Do zero aos dois anos de idade, está na fase sensório-motora, quando ainda não tem noção de mundo. Entende aquilo que está no raio de visão dela, mas não consegue ter a noção simbólica da comunicação. Sua prioridade nessa fase é sentir o próprio corpo, por isso, coloca a mão na boca, se sente, se toca e tem a percepção de que as coisas que estão ao seu redor são extensão de si mesma.

À medida que a criança vai se desenvolvendo e começa a ter a noção de que existe um mundo a ser explorado, está na faixa dos dois anos. Com essa idade, ela consegue andar e tem um repertório verbal suficiente para iniciar a fala. Em geral, já consegue dizer o que deseja e tem a curiosidade para explorar o mundo. Ela ainda é um bebê, não tem total independência e nem maturidade para poder, de fato, explorar esse ambiente, porém, recebe muitos estímulos externos e isso chama sua atenção.

Quando não consegue fazer o que gostaria ou ter acesso ao que queria (um brinquedo, por exemplo), fica muito frustrada e isso a deixa irritada. Ela quer alcançar, mas não consegue; quer mexer, mas não pode; existem os limites impostos pela própria questão fisiológica ou de segurança. Diante de tudo isso, como não tem o controle inibitório para a raiva, tende a ficar mais irritada e pode até se tornar agressiva.

De certa forma, ela quer impor as regras dela e o jeito dela de lidar com a situação, por isso, o “não quero” acaba se destacando, assim como as recusas no obedecer, porque, afinal, ela quer ter independência e autonomia.

DNJ: O que é a birra?

Márcia Romeiro: A birra, na análise de comportamento, é chamada de contracontrole. É quando, no contexto, existe alguém com maior autoridade e alguém que pune. Vamos imaginar que esse indivíduo que pune seja o pai** autoritário e punitivo, que insere um contexto em que a criança não concorda. Diante disso, ela se sente frustrada e punida. O que, geralmente, ela faz? Ou se esquiva daquela condição agressiva ou propõe o contracontrole. Ou seja, a rebeldia. É como se ela dissesse: “Sou tão forte quanto você. Não vou ter isso que quero, então vou gritar até que você canse e me dê o que eu quero”.

Assim, a birra é um jeito de a criança mostrar o poder que ela tem. Além disso, ela tem essa necessidade de testar o adulto e o jeito que encontra para controlar a situação é a birra. Isso porque ela não tem o repertório verbal bem elaborado para discutir e argumentar. Crianças maiores vão conseguir contestar. O adolescente, por exemplo, consegue. As crianças menores, não. O argumento delas é chorar até que alguém ceda às necessidades dela.

DNJ: Se esse comportamento de birra for reforçado, ele pode evoluir para a agressividade?

Márcia Romeiro: Sim. Se o pai, cansado, chegou do trabalho e diz: “está bom, para de gritar, toma aqui o que você quer”. O que ela aprende? Que a birra dá certo. Dessa forma, se for reforçada, a birra faz com que a criança assuma um comportamento agressivo e perca o controle.

DNJ: Que situações favorecem esse comportamento agressivo da criança?

Márcia Romeiro: Situações, em geral, que são punitivas, severas, ou situações em que a criança não compreende o erro cometido geram esse tipo de situação. Isso pode aumentar o número de birras e gerar uma condição de agressividade. Além disso, ambientes onde o modelo é a violência e onde os pais discutem ou se batem na frente das crianças, podem gerar sim o comportamento agressivo como modelo aprendido.

DNJ: Como prevenir uma birra? Existem técnicas?

Márcia Romeiro: Conhecer a criança é fundamental. Pais atentos ao desenvolvimento do filho vão saber o que fazer. Cada criança vai estar sensível a uma situação. É preciso conhecer a criança, suas frustrações e entender seu desenvolvimento cognitivo.

A partir do momento em que os pais percebem quais são os pontos fracos, quando a criança se torna mais rebelde, em quais contextos isso acontece, conseguem prevenir.

Se, por exemplo, essa criança vai ao supermercado com fome. Isso vai aumentar a probabilidade de birra. Da mesma forma, se ela não está num dia bom, está sentindo dor, quer ir para casa e você resolve fazer compras justamente naquele dia. Com certeza, ela vai fazer birra.

Isso também acontece com os pais, que – em determinados momentos – ficam mais vulneráveis para aceitar o controle da criança. Existem pais que são permissivos demais, quando estão mais cansados, e exigentes demais quando estão de folga. A criança fica sem referências nesse caso. Não sabe quando pode pedir alguma coisa e quando ela não pode.

É importante ser sensível às emoções da criança e às nossas próprias emoções também. Se não está num dia bom e vai exigir menos da criança, então, é aconselhável estar num ambiente com menos estímulos, para não ficar vulnerável a uma situação que vai exigir mais disciplina.

DNJ: E quando a criança vai para a escola? O que ela aprende com os amigos pode interferir nesse repertório de birra?

Márcia Romeiro: O modelo familiar é o primário. Se ela tem um bom modelo em casa, mesmo que tenha modelos agressivos na escola, a referência é o que ela aprendeu com os pais. Agora, pode acontecer de o ambiente escolar, de alguma maneira, evocar o comportamento agressivo. É o caso de uma criança que sofre bullying, por exemplo.

DNJ: Como lidar com o sentimento de posse da criança de dois anos? Como ensinar a dividir?

Márcia Romeiro: Essa situação é muito normal, especialmente aos dois anos. Nessa fase, do pré-operatório, a criança ainda é muito egocêntrica. Tudo é dela e para ela. O mundo ainda é tido como extensão dela mesma, só que agora ela tem uma noção maior. É como se pensasse: “Tenho meus amigos, meus irmãos, meu pai, minha mãe, mas ainda assim as coisas ainda são minhas, são para mim”.

As crianças nessa idade não compartilham. Não existe aquela coisa de brincar com o amigo. Não. São crianças brincando uma do lado da outra, cada uma com sua brincadeira. Ainda existe esse egocentrismo, que faz parte.

Ela vai se abrir, realmente, para o mundo social entre os seis e sete anos aproximadamente (algumas crianças antes, outras depois). Durante esse período, o pré-operatório, ela ainda está navegando pelo meio social. Entende algumas exigências sociais, mas fica naquela balança: as suas necessidades e exigências acabam se sobreponto à habilidade de empatia. Nessa idade, a empatia ainda é muito empobrecida.

DNJ: Como os pais devem agir para diminuir essa “falta de sociabilidade”?

Márcia Romeiro: Tentar negociar. “Você tem vários brinquedos. Com qual você vai brincar? Com esse! Então, tudo bem, você emprestar esse que você não vai brincar para seu amigo brincar agora?”. A criança já tem o entendimento, mas ainda assim ela precisa participar do processo… não pode ser uma imposição dos pais, porque senão, de novo, ela se sente injustiçada e a injustiça acaba gerando contracontrole e pode evoluir para uma agressividade.

Não posso tirar o brinquedo com força da mão dela, porque se é agressão, ela também vai agir com agressão. Tem que ter muito cuidado. Tudo isso é muito delicado para a criança.

É como se o brinquedo fosse extensão dela e ela tem essa necessidade de ter as coisas muito concretamente nas mãos. Se os pais deixam o amiguinho brincar com um brinquedo do filho, sem negociar com ele e explicar, isso pode gerar uma ansiedade muito grande porque ele ainda não entende que é um empréstimo e que o brinquedo vai voltar.

DNJ: Mas é importante estimular esses “empréstimos” e essa convivência?

Márcia Romeiro: Sim, só dessa forma a criança vai compreender que algumas coisas saem da visão dela, mas depois voltam.

DNJ: Os mais antigos, principalmente, avaliam o comportamento das crianças procurando semelhanças com outras pessoas da família. Então: “ah, está fazendo isso porque ‘puxou’ a tia, nem adianta tentar corrigir”. Essa “genética” comportamental existe? Dá para reverter um mau comportamento?

Márcia Romeiro: Existe influência genética, mas isso não é o fator principal. Todo comportamento tem ligação com a questão filogenética (evolução da espécie) e ontogenética (evolução do indivíduo), que seria o próprio comportamento esperado por aquela espécie, a partir da sua história de vida e da história genética daquela família. Isso exerce uma influência, mas existem também fatores que são do próprio ambiente e da construção do comportamento da criança.

Nosso comportamento é selecionado pelas consequências. Se eu faço algo que dá certo, aquele comportamento é reforçado. Logo, se eu faço algo que dá certo, vou tentar de novo e de novo, até que aquilo passe a fazer parte do meu repertório. Se deu errado, tento de novo, mas chega uma hora que desisto daquele comportamento.

Essa dinâmica, essa interação do indivíduo com o meio é que, de fato, estabelece esse repertorio comportamental. É assim que a criança vai aprendendo o que dá certo naquele ambiente. Ela vai selecionando e construindo alguns comportamentos. Isso conta muito mais do que carga genética.

DNJ: Que dica você deixa para os pais que estão passando por essa fase de birras e agressividade das crianças?

Márcia Romeiro: Estejam em alerta a seus próprios comportamentos. Os pais que são exigentes demais consigo mesmos, também exigem demais das crianças. Os filhos desses pais são, em geral, crianças autoexigentes, porque percebem que a regra da família é a exigência.

Muitas vezes, o segredo é exigir menos e observar mais, perceber mais e ter a capacidade de se autoperceber. O autoconhecimento é fundamental. Só assim você vai perceber o que é uma exigência necessária para aquele contexto e o que é uma exigência sua.

Por exemplo, de repente, você está exigindo algo do seu filho porque, para você, aquilo é um crivo de que é bom como pai ou como mãe.  Assim, se ele tirar “dez”, significa que você foi uma boa mãe. Se ele for capaz de fazer amigos, significa que você está dando uma boa educação. Se ele for agressivo, significa que você não ensinou direito. E não é bem assim.

Os pais precisam observar mais o contexto, os filhos e também o próprio comportamento. “Por que estou exigindo isso? Será que meu filho é capaz de entregar o que eu estou exigindo? Será que ele tem a capacidade cognitiva e física de atender a essa exigência? Será que o estou castigando de uma forma muito severa? Estou exigindo isso, por quê? Para quê? Por que quero isso do meu filho?”.

É fundamental perceber a necessidade do seu filho e não a sua como pai ou mãe.


DICAS

O que fazer na hora da birra? A dica é não reforçar essa birra. Deixar a criança gritar. É aquela ideia de que, se não tem plateia, não tem show. Na hora da birra, o pai não pode atender a necessidade. É preciso frustrar mesmo e evitar até contato visual. Percebeu que está fazendo birra, vai fazer outra coisa e deixa a criança resolver sozinha.

E se for num ambiente público? Nesse momento, as regras que a criança teve antes vão ser muito importantes. Mas, se a situação em público fugiu do controle, o ideal é tentar tirar a criança do ambiente. Pegar no colo e levar para outro lugar, conversar e tentar, de alguma maneira, estabelecer uma comunicação.

Como impedir que as birras evoluam para um comportamento agressivo? É preciso observar. Os pais precisam perceber quais as necessidades da criança e por que ela está frustrada. Por exemplo: “Está frustrada porque o brinquedo quebrou? Ok, vamos ajudar a consertar o brinquedo”. Quando os adultos se dispõem a ajudar a criança, ela percebe que não está sozinha. Só assim consegue explorar o mundo, nem que seja com a ajuda do adulto.

E quando querem comprar alguma coisa que os pais não querem ou não podem? O segredo, nesse caso, é ter paciência para conseguir extrair da criança a melhor comunicação possível para aquele momento. A criança está chorando? Então para, tenta se abaixar na mesma altura da criança e estabelecer um diálogo: “Por que você está chorando? Por que você quer essa boneca? O que você mais gostou nela? Por que você não brinca com a outra boneca que você já tem em casa? Por que quer tanto essa?”. Quando a criança começa a ter um reforço daquele repertório verbal, a própria ansiedade dela diminui. Ela sabe que consegue ser compreendida pelo pai e pela mãe. Não precisa gritar, nem chorar.

Como lidar com relação da criança com o dinheiro? A criança não quer estar no controle? Então, deixe-a fazer a economia, deixe-a participar do processo de conquista do brinquedo ou de algo que ela queira muito. “Quer essa boneca? Vamos olhar no seu cofrinho? Dá para comprar ou ainda não é suficiente? Precisamos poupar mais?”. A partir do momento em que ela passa pelo processo, consegue aprender a inibir essa impulsividade.

Existem exercícios para controlar a ansiedade da criança? A sopa quente é um bom exercício. Quando fizer, deixe a criança próxima, esperando esfriar. A capacidade de esperar algo que é muito urgente faz com que o nosso cérebro desenvolva o controle inibitório. No exemplo, a criança precisa inibir a vontade de devorar a sopa, porque a consequência será queimar os lábios. A própria criança vai frear essa ação. O adulto não precisa frear por ela.  O controle ainda é dela e aprender a ter esse controle faz a criança ganhar autonomia.

Crédito: Arquivo pessoal

* Márcia Romeiro é psicóloga e psicopedagoga especialista em Psicologia Clínica sob abordagem Comportamental pela Universidade de São Paulo (USP).

Site: www.seminarepsicologia.com.br


** Em toda a entrevista, quando dizemos mãe e pai, estamos  nos referindo a todas as pessoas que desempenham a função materna ou paterna, sendo ou não genitores.

Crédito da foto principal: Pixabay

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