Laiana Horing Nantes*
Sabe aquela história de que um filho muda totalmente a vida da gente? Então, comigo não foi bem assim. Eu não me tornei outra mulher após aqueles primeiros minutos de 24 de janeiro de 2016. Mas, quase. Não ganhei os super poderes da “mulher maravilha”, que faz todas as coisas com rapidez e agilidade. Meus banhos continuam sendo levemente demorados. Eu não consigo engolir a comida sem mastigar, muito menos cozinhar e cuidar do Heitor ao mesmo tempo. E ainda esqueço coisas e tarefas, como a minha marmita do dia ou uma consulta dele com a pediatra.
Não é a toa que, conforme ele cresce em centímetros, o meu cabelo diminui – não é moleza para qualquer mãe louca e assalariada manter longos cabelos cacheados. Mas estou bem feliz com os curtos. E isso é uma mudança e tanto para mim.
Heitor é um menino curioso, agitado e cheio de querer ser independente – ele e a “torcida bebê” do Flamengo, né?! Eu sou libriana, confusa e um tanto quanto desorganizada. Nunca pensei que fosse dizer isso, mas, graças a Deus que Anderson, o pai e marido nessa história, é de capricórnio.
Do ponto de vista das habilidades práticas, pouca coisa mudou na minha vida. Mas, aqueles valores intangíveis, que habitam a alma e o coração, que ditam nosso comportamento e relações… Ah, esses experimentaram a roda viva da vida.
E, hoje, no meio desse ciclo de modificações, algumas coisas eu já consigo enxergar com nitidez: essa mudança não vem no momento do parto, apesar desse evento ter sido, de longe, o mais transformador da minha vida (e, portanto, para explicá-lo é outra história).
A minha caminhada para a maternidade começa antes mesmo da gravidez. Ela vem das profundezas do subconsciente, da espiritualidade, sei lá. Eu só tenho certeza de que a mãe que sou hoje é completamente diferente daquela que um dia, muito distante, eu pensei ser.
Existe um provérbio africano que diz ser “preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. Eu conheci essa frase ainda quando estava grávida, mas agora, refletindo a trajetória que percorri até aqui, eu digo que a aldeia e, principalmente, a rede feminina dentro dela, são também decisivas para a formação de uma mãe.
Todas as etapas que passei e passo na construção do meu eu-mulher-mãe foram apoiadas por mulheres generosas, dispostas ao diálogo. Desde a amiga distante que dedicou cerca de uma hora do seu tempo de recém-parida para me acalmar o coração e me dar o empoderamento mais relevante (a força e a dor são mais mentais do que físicas), passando pela gentil companhia orientadora da Doula mais amorosa que eu poderia encontrar, até o colo de amor e compreensão da minha mãe.
Todas elas me fizeram abraçar como lema de vida o feminismo, que sempre esteve em mim, mas que, por vezes, troquei pelo julgamento. Mulheres, sejamos aldeia umas para as outras!
Foi nessa aldeia, às vezes material às vezes virtual, que me fortaleci para enfrentar a parada dura do puerpério. É, pessoas… pensem numa fase mais dramática do que a puberdade… Eis o puerpério! E quando ele vem acompanhado de bebê com refluxo, dificuldades na amamentação, marido viajando e um procedimento cirúrgico uterino com dois meses após o parto, a coisa não é molezinha!
Esse lado prático da maternidade é bastante desafiador. Mas, para mim, foi bem menos traumático do que as subjetividades de ser mãe. E aqui começa a maior transformação que o encontro com o Heitor me proporcionou: a coragem para bancar minhas escolhas.
A insegurança é um traço marcante da minha personalidade. Tomar decisões e sustentá-las sempre foi uma dificuldade para mim. Quando elas estão associadas a algo completamente novo como a maternidade, minha alma fica à beira do caos.
Desde o resultado positivo do exame de gravidez, ter a vida de um ser dependendo das minhas escolhas foi o que mais me preocupou. Para enfrentar essa batalha interna eu busquei informação. E se tem algo que eu compartilho com todas as mães é isso: Duvide! Conteste! Investique! E, principalmente, acredite na sua intuição e capacidade.
Foi assim que me blindei contra a ignorância e a chateação dos palpites. Até hoje me surpreendo como resisti a tanta coisa… E também como superei meus fracassos sem muitos traumas.
Sim, eu consegui bancar a amamentação prolongada (Heitor ainda mama aos 16 meses de vida e seguimos até quando EU e ELE entendermos suficiente); não, não consegui afastá-lo do açúcar antes dos dois anos (paciência, essa eu perdi). Assim vamos levando a vida, um dia após o outro, aprendendo, temendo e superando.
Entre as muitas conquistas pessoais que a maternidade me trouxe, eu considero muito valiosa a compreensão sobre a diferença entre dor e sofrimento – ela me libertou e tem me ajudado a enfrentar os novos desafios de uma mulher em transformação.
A dor é um processo natural da vida. Dói nascer, dói crescer, amar, viver, morrer. Porém, atribuir sofrimento à dor pode ser uma escolha. Eu escolhi passar pela dor da incerteza sem sofrência. Não é fácil. Vez ou outra meu lado vitimista me toma de assalto e vejo-me agarrada na lamentação. Mas, o processo é esse: reconhecer as fraquezas e encará-las. Assim sigo.
Aos poucos, me descubro uma mãe que cuida, mas incentiva a liberdade – não tem nada que me deixa mais feliz do que ver Heitor correr cambaleante e cair. Seus tombos já provocaram algumas consequências meio graves: sofri ao ver seu dentinho quebrado, mas logo me recuperei e seguimos na loucura da corda bamba dos primeiros passos (risos). Se algumas certezas foram por água abaixo, a convicção de que meu amor materno não será possessivo tem se confirmado. E isso me faz muito bem.
Por muito tempo, eu neguei a maternidade como projeto de vida. Ela me soava limitadora, parecia podar meus sonhos tão pessoais, particulares. Não sei dizer exatamente como e quando ela passou a fazer sentido pra mim.
Tenho suposições: pode ter sido pela pressão social que nós, mulheres, sofremos para sermos mães; também pode ser o meu encanto pela humanidade das relações. Eu ainda não sei dizer se amo mais o Heitor ou a relação que construímos dia a dia.
A realidade é que, no meu quintal, agora habita um novo amor. Um amor doloroso, porém libertador. Um amor gestado no submundo da minha alma e que ganha, a cada novo piscar**, as cores surpreendentes da vida.
** A vida, Senhor Visconde, é um pisca-pisca.
A gente nasce, isto é, começa a piscar.
Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu.
Piscar é abrir e fechar os olhos – viver é isso.
É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais.
A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso.
Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia.
Pisca e mama;
Pisca e anda;
Pisca e brinca;
Pisca e estuda;
Pisca e ama;
Pisca e cria filhos;
Pisca e geme os reumatismos;
Por fim, pisca pela última vez e morre.
– E depois que morre? – perguntou o Visconde.
– Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?
(Trecho de Memórias de Emilia, de Monteiro Lobato)
* Laiana Horing Nantes é mãe do Heitor, libriana, sanguínea e jornalista, de Mato Grosso do Sul.
Foto em destaque: Pixabay
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